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E lá se vão sete anos da época que o véu de mocinho ético do PT caiu por terra. Você, caro leitor, deve se lembrar de como foram aqueles meses intensos de escândalos, CPIs e investigações do Mensalão. Acho que nunca existiu uma crise política tão intensa quanto aquela. Era como se o brasileiro tivesse passado a gostar de política! Parecia final de Copa do Mundo. Lembro que na lotação que pegava até o trabalho o motorista dirigia ouvindo a CPI ao vivo na rádio; e olha que o gosto musical dele era de Calipso pra baixo.

Na época eu trabalhava na Máquina da Notícia, uma das maiores assessorias de imprensa do país. Dito assim, cruamente, pode parecer grande coisa. Mas não é. Eu estava lá fazendo clipping, um servicinho sem qualquer glamour ou “grande coisa”.

Para quem não sabe, clipping é o ofício de picotar jornais em busca do nome dos assessorados. É o mais baixo grau da escala de trabalho de um jornalista, mas eu era um estagiário duro de uma universidade particular ruim e conseguir aquele emprego era minha maior conquista até então.

Entrava às 4 da manhã na avenida paulista. Chegava junto com a pilha de jornais que vinham dos mais variados cantos do país (e do mundo). A equipe do departamento de clipping era grande, deviam ter uns 15 ou 20 clipadores, todos estagiários. Cada um lia uma média de 4 ou 5 jornais por dia e tudo tinha que estar pronto antes das nove da manhã, pois esse horário a notícia tinha que estar em outro setor da máquina. As esteiras da notícias não podem parar!

Éramos jovens de classe média de universidades variadas todos juntos numa sala praticamente sem “chefes” ou “superiores”, pois nenhum “chefe” ou “superior” que se preze chega às 4 da manhã em algum lugar. Essa combinação de jovens e ausência de superiores me proporcionou uma das experiências mais divertidas num ambiente de trabalho que já tive na vida.

Era só curtição! Gente animada, engraçada, garotas bonitas, piadas, paquera, azaração e, eventualmente, jornais. Pois é, os jornais estavam lá. Era nossa obrigação principal, mas eram apenas meros coadjuvantes. Tinham os mais comprometidos e os mais desleixados, mas é óbvio que ninguém lia como deveria ler. Clovis Rossi, Merval Pereira, Janio de Freitas, Mirian Leitão, piffff, que nada! O negócio era José Simão, os quadrinhos e, principalmente: o horóscopo. Ah, o horóscopo era o momento alto do dia. Todo mundo parava e ouvia o gaiato da vez ler em voz alta todos os doze signos do zodíaco.

Mas tudo isso foi pré-mensalão. O PT ainda era um bom partido e eu ainda era um clipador. Em questão de dias, tudo mudou.

Fui chamado por um dos figurões da Máquina. Ele disse que a empresa tinha recém conquistado uma conta importante e perguntou se eu queria assumir uma vaga no Termômetro. Era meio que uma promoção. O salário era o mesmo, mas eu não teria que acordar mais às quatro da manhã.

Conhecido como o Núcleo de Inteligência da Informação, o Termômetro era um boletim de análise de mídia feito em cima das notícias separadas no clipping. Pra mim era uma ótima oportunidade, principalmente porque o Termômetro era visto com bons olhos pelas garotas do clipping. Ir pra lá significava um aumento considerável nas chances de “me dar bem” com alguma delas. Sim, eu aprenderia mais um monte de outras coisas também, mas isso era menos importante.

O tal cliente que havia me possibilitado a ida até o termômetro era justamente o Partido dos Trabalhadores, o PT.

Obviamente eu não fazia a analise editorial do PT sozinho, era um dos estagiários que assinavam o boletim junto com outros jornalistas mais experientes.

No primeiro dia da nova função, aparentemente tudo ok. Nada de muito promissor na imprensa naquele dia. Uma citação aqui, outra acolá, mas nada que comprometesse ou merecesse um alerta no boletim.

O primeiro dia do PT como assessorado da Máquina da Notícia teria sido tranquilo, não fosse aquele o dia 6 de junho de 2005, mais conhecido como o dia em que Roberto Jefferson deu a entrevista bomba para a jornalista Renata Lo Prete na Folha de S. Paulo.

Lembro de ver alguns figurões andando desesperados pela redação da assessoria folheando páginas de jornal, suando frio pela testa. Já tinha dado minha hora, o termômetro já estava na caixa de entrada dos assessores de imprensa e dos dirigentes do partido fazia algumas horas, eu já poderia ter ido embora, mas estava ali tentando a sorte com as garotas do clipping.  De pé, com a mochila nas costas, percebi que tinha alguma coisa errada.

“Aqui, como você não viu isso? Tá maluco! Como perdeu essa notícia?”, gritava um alto figurão que raramente aparecia por ali.

O erro veio do clipping e afetou toda a cadeia de produção da Máquina. A notícia não foi pro clipping e não saiu no termômetro, os assessores de imprensa estavam desinformados e os dirigentes do partido foram pegos de calças curtas.

Aquele foi um dia atípico, com tensão no ar e demissões. O noticiário dos dias seguintes também estava confuso, ministros batendo cabeça, declarações desarticuladas e problemas de comunicação que resultaram na potencialização do escândalo. Gosto de imaginar o enorme efeito dominó que um erro na linha de produção fordista da “máquina” causou. Será que poderia ser tudo diferente? Com assessores e dirigentes mais preparados e o escândalo sendo abafado logo no seu início?

No mesmo dia a Máquina perdeu a conta do PT. Por sorte eu continuei no termômetro, trabalhando para outros clientes.

Diferente do clipping, no termômetro a gente lia as notícias. Posso dizer que foi lá que aprendi a ler jornal e isso foi importantíssimo pra minha carreira. Não me dei bem com nenhuma garota do clipping, mas tenho muito carinho e apreço por essa época especial da minha vida. Tenho ainda mais orgulho de conhecer Lucas Lopes, mais conhecido como Parrudo. Um dos sujeitos mais engraçados e bem humorados que já conheci nessa vida e que não colocou a entrevista do Roberto jefferson no clipping do dia 6 de junho de 2005 e foi demitido naquele mesmo dia. No fundo invejo um pouco o fato dele poder ostentar no currículo uma cagada que pode ter mudado para sempre a história do nosso país.

Parabéns Parrudo!!!

Os números de 2010

Os duendes das estatísticas do WordPress.com analisaram o desempenho deste blog em 2010 e apresentam-lhe aqui um resumo de alto nível da saúde do seu blog:

Healthy blog!

O Blog-Health-o-Meter™ indica: Uau.

Números apetitosos

Imagem de destaque

Um Boeing 747-400 transporta 416 passageiros. Este blog foi visitado cerca de 9,900 vezes em 2010. Ou seja, cerca de 24 747s cheios.

 

Em 2010, escreveu 37 novo artigo, aumentando o arquivo total do seu blog para 186 artigos. Fez upload de 22 imagens, ocupando um total de 3mb. Isso equivale a cerca de 2 imagens por mês.

The busiest day of the year was 3 de agosto with 148 views. The most popular post that day was NOTAS DE UM ALARMISTA.

De onde vieram?

Os sites que mais tráfego lhe enviaram em 2010 foram twitter.com, atitudebrasil.com.br, search.conduit.com, julianeoliveira.wordpress.com e dezporhora.org

Alguns visitantes vieram dos motores de busca, sobretudo por sapatos, rolo compressor, picasso, rolo compressor thiago forest e metro sp

Atracções em 2010

Estes são os artigos e páginas mais visitados em 2010.

1

NOTAS DE UM ALARMISTA outubro, 2008
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2

POSSIBILIDADES DE NEGÓCIO novembro, 2008
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3

NOTAS DE UM ALARMISTA fevereiro, 2008
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4

O CENTRO DA AMÉRICA… DO SUL março, 2009
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5

NOSSOS ESPELHOS fevereiro, 2009
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Carne no fogo, cerveja na geladeira, música brasileira no MP3 e jogo da seleção na TV. O sujeito pega um pedaço de linguiça da bandeja de madeira sem reparar que o corte feito pelo churrasqueiro não foi devidamente finalizado – fica aquele famoso fiozinho ligando a outra ponta. Durante o trajeto bandeja boca a linguiça é arrastada, se desprende, faz uma curva no ar e vai parar no chão. Antes que o cachorro tenha sequer tempo de pensar,  nosso amigo se abaixa, pega a carne e enfia na boca. Ele ainda lambe a ponta dos dedos… Esse é o Julião, talvez o maior pesadelo do Dr. Bactéria.

Durante alguns meses o Fantástico entrou na casa de milhões de brasileiros para alertar sobre os riscos dos nossos inimigos invisiveis. Limpar bem as mãos, não andar descalço, jogar produtos químicos na sua sala de jantar, desifetar seu banheiro com ácido. Essa era a filosofia do tal doutor: limpeza, limpeza, limpeza!

Não sou médico, nem sou “entendido” do assunto, mas o pouco que estudei me faz ter bem claro na cabeça que não posso tratar os micro-organismos como inimigos. E mesmo que tivesse faltado a todas as aulas de biologia a simples observação do dia a dia me daria a certeza de que esse tal de doutor bactéria não passa de uma ameba. Sim, porque as pessoas mais saudáveis que conheci na vida não são exatamente o tipo que limpa as mãos de cinco em cinco minutos com álcool em gel, são  justamente o contrário.

Uma vez fui num churrasco no interior de São Paulo. Alí acho que conheci a criança mais saudável de todas. Era um guri que corria pelado, tomava água da piscina, sujava o pé de barro e fazia xixi em tudo que era canto do jardim. Convivia bem com as tais bactérias, tinha energia e vitalidade. Engraçado que no mesmo churrasco um outro garoto ficava sob a guarda da mãe que observava a tudo com certa indignação.

Aqui em Mato Grosso é evidente essa teoria. Cuiabaninhos “pé rachado” que nadam em rios, sobem em árvores, mexem na terra. Eles são o que há de mais moderno em termos de medicina preventiva. Enquanto isso os garotos de apartamento que vivem com cuidados excessivos, toda hora estão doentes. E pior, esse comportamento “preventivo” da cartilha Dr. Bactéria, prejudica o equilibrio do próprio meio ambiente. Usar detergente em vez de sabão em barra porque o seu prato fica menos gorduroso é ruim pra saúde dos rios, dos cuiabaninhos e para a sua própria saúde. A mortalidade infantil é maior entre crianças pobres não porque elas recebem menos cuidados que as crianças de carpete, mas porque elas ficam mais expostas aos danos ambientais.

O doutor Bactéria é só mais uma dessas personalidades típicas da decadente babilônia. É aquele cientista de uma nota só que passa a vida lendo os mesmos livros. Claro, ele seria um ser humano inofensivo e talvez bastante agradável caso não fosse potencializado pela mídia. Nesse caso aquela amebinha inofensiva cresce e infecta todo o grande corpo social. Aí meu amigo, como não inventaram antibióticos midiáticos realmente eficazes, só mesmo o tempo pra curar.

É ou não é um terrorista?

Ah, só pra constar, Julião, o sujeito do começo do texto, está vivo e bem. De vez em quando ele tem algumas desinterias, mas nada que seu organismo não consiga reverter.

Democracia Big Brother

Vivemos uma democracia Big Brother, ou seja, votamos naquele que aparece melhor na TV. O brasileiro se acostumou com essa idéia de escolher o sujeito que mais simpatiza, ou que “acha” ser o mais “legal”. Nessas eleições o clima é igualzinho no começo do ano, quando todo mundo fala de fulano que pegou sicrana, beltrano que deu escândalo, a gostosa que mostrou o seio, e assim vai. A corrida presidencial se transformou num reality show de mau gosto, e o público vai votar baseado nessa farsa midiática.

A discussão sobre aborto tomou conta da agenda política nesse segundo turno, como se isso importasse alguma coisa. Um candidato a presidente pode ser a favor do aborto, da maconha, do casamento gay, da eutanásia, da putaria e da cachaça, pode ser a favor do que diabos ele quiser, não interessa, pois não cabe a ele dar pitaco em temas referentes a sociedade civil, pra isso existe toda uma corja de legisladores conhecidos como senadores e deputados. O que a gente precisa saber de um candidato a presidente é qual política econômica ele vai aplicar, se acredita na privatização, na estatização, na distribuição de renda, na diplomacia, no austeridade fiscal? É isso que uma sociedade deveria discutir antes de sair digitando o voto nas urnas.

É chocante ver o nível de reducionismo dessas eleições. O brasileiro não problematiza mais os temas políticos e uma parcela importante da população não consegue ver, por exemplo, que ser contra a distribuição de renda e a educação é uma maneira muito pior de ser contra a “vida” do que se declarar abertamente a favor do aborto. Discutir apenas um tema com essa paixão toda é raso demais e não leva a lugar nenhum.

Acho que a culpa disso são esses reality show que o povo ficou viciado. O sujeito se acostumou a votar pela estampa. Afinal, qual profundidade ideológica ele precisa ter pra decidir entre o fortão, a gostosa ou o homossexual, no tal do “paredão”? Aí, nas eleições, a superficialidade é a mesma. Num debate, por exemplo, vale muito mais o jeito de falar do que o conteúdo em si. Se a candidata é um pouco rouca, se fala meio baixo, titubeia, não serve, sai fora, tá eliminada. Se o sujeito sorri, gesticula, é educado, ah, é nele que eu vou votar, olha só que cara bacana, que homem bom, digno.

No futuro, se os caminho politicos se encurtarem, é bem provável que tenhamos um Cléber Bambam no Palácio do Planalto.

Intervalo

Ei! Tá com pressa? Aproveite para ir devagar

Conheça o Dez Por Hora

A gente usava o mesmo uniforme idiota, camisa azul com logomarca em letras garrafais: BLOCKBUSTER. Fazia frio, daqueles de gelar a espinha. Através do vidro dava pra ver Viviam passar as caixinhas de fitas de um cliente no leitor optico. “Bip”; o cérebro disparava sozinho o barulinho. “Mais alguma coisa, senhor?”, dava pra ler nos seus lábios.

Lá fora eu e Leandro limpávamos os vidros da loja. Eu passava o rodo de esponja e ele vinha a seguir com o de borracha.

– Mas ainda não entendi direito qual é a história desse filme.

Eu tentava explicar o roteiro de um filme que eu e meu amigo Zé tínhamos começado a escrever quando estávamos no colegial. O título era: “Raposas Miseráveis”. Tínhamos trabalhado um bocado naquele projeto. O roteiro, apesar de simples, deu um puta trabalho. Chegamos até mesmo a matar aula algumas vezes para terminar. O Zé alegava pra sua mãe que era muito melhor ele se dedicar às artes cinematográficas do que aprender matemática. Dona Lourdes, que sempre acreditou no filho e nas escolhas que ele fazia, deixava a gente usar o porão. Ficávamos lá jogando vídeo-game até ela chamar pro almoço.

– Mas é isso que eu te falei, tem esse cara e essa mina, e o português, dono desse bar no meio do mato.

– Sim, mas e o que eles querem com ela afinal?

Como se tratava de um roteirno inacabado eu ainda não sabia a resposta. Na verdade não sabia respostas para um monte de coisas. Só tinha montado essa introdução de um filme de suspense. Um cara que viajava num escort velho para num bar no meio de uma estrada, lá tem dois caras, eles trocam tiros, ele mata os dois e pergunta sobre a garota para o dono do bar, um português. Meio que acabava aí, apesar de mais algumas idéias de cenas pro meio e final do filme.

– Mas por que o nome Raposas Miseráveis?

– Porque eles são umas raposas!

– E por que são raposas?

– Porque são espertos!

– E por que você fala “eles”, não é só um cara?

– Não, são dois.

– Você disse que era um cara. Um cara que chega num escort velho e mata dois que estavam no bar.

– Então… esses dois que são os raposas.

– E por que são espertos? Por que dar o nome de um filme pra dois caras que morrem logo no começo? E o português, o que ele faz na história?

O roteiro deveras era fraco. Mas eu tinha esperança que na medida que fosse sendo feito o filme a história viria naturalmente. Na minha cabeça era só começar a filmar. Eu já tinha um sujeito perfeito pra interpretar o português. Tinha também os dois sujeitos que iriam trocar tiros e morrer no bar. O Zé, meu amigo, co-escritor do roteiro, ia ser o sujeito que procura pela moça, o personagem principal. Já a moça era uma menina da sala… uma que o Zé tava pegando. A gente não precisava de roteiro, estava tudo acertado, iamos usar uma câmera de um amigo e a estrada ficava no sítio do tio do Zé, no interior, a gente só precisava acabar com as lacunas do roteiro e combinar a filmagem com o dono do bar… até o carro, um escort velho, eu já tinha arrumado emprestado.

– Não tem sentido. Esses dois caras, o que eles estavam fazendo no bar, o cara chega matando ou eles discutem antes?

– Olha, o roteiro não tá pronto, ok? Eu estou pensando nessas coisas. Só quero saber o que você acha?

– O que eu acho do que? Não tem nada pra achar?

– Do título, o que achou do título?

– É, o título tá legal.

Esta foi a época na qual tinha certeza que um dia seria diretor de cinema. Não costumava jogar na loteria, mas, se existia uma certeza na minha vida, era a de que se eu ganhasse alguns milhões eu investiria tudo na produção de um filme. No Raposas Miseráveis! Durante as aulas de matemática eu ficava pensando nos créditos iniciais do filme. Faria algo a là Tarantino, com uma trilha doida e meu nome aparecendo bem na hora que a música explode. “Direção:” e meu nome bem grande embaixo.

Assistia todo dia um filme diferente. Podia levar uma fitas pra casa. Na minha folga dava pra pegar até três; eu levava e ainda ia no cinema à tarde. Era viciado em filmes, garimpava coisas antigas tipo Welles, Bergman, Felini, Ed Wood. Costumava pegar lançamentos só para reclamar. Só pra dizer que o roteiro era uma bosta, o diretor um incompetente e os atores todos uns ridículos. Dormia sonhando com os créditos iniciais do filme e com aquela cadeira de cineasta.

– Ok, mas eaí? Por que o filme não deu certo?

– O cara não quis emprestar a câmera.

As aulas de árabe serviram apenas para engrossar meu complexo de sísifo. Mas dessa vez tinha um bom motivo, uma nobre razão. Sim, eu iria me dedicar exclusivamente ao vestibular. Debruçaria-me com vontade sobre aulas de física, química, matemática e mergulharia a mente na literatura. Coloquei a cafeteira para funcionar, abri os livros, sentei na poltrona do meu pai e comecei.

Parei vinte minutos depois. Não estava dando certo! Precisava procurar outro lugar. Fui até a biblioteca da Vergueiro, sinônimo de estudante vestibulando. Eles estavam sempre lá, saiam dos inúmeros cursinhos das redondezas e confluíam com seus uniformes para os bancos e cadeiras da biblioteca. Japoneses e suas calculadoras, maconheiros e seus cabelos, ninfetas e seus seios brotantes. Sempre frequentei o Centro Cultural e sempre tive vontade de fazer parte dessa nobre classe de estudantes aplicados.

Mas, logo desisti. Não era muito estimulante ver aqueles jovens rabiscarem contas infinitas nos cadernos. Era melhor estudar em casa, sozinho com minha ignorância. Além do mais, quem precisa de biblioteca quando se tem banda larga?

De Certa maneira o Telecurso 2000 é interessante. O conteúdo é meio chato, como toda aula, mas as interpretações até que são legais. Descobri por acaso, no youtube, quando procurava alguma coisa sobre retículo endoplasmático rugoso. Percebi que dava pra fazer o curso todo por alí, sem sair de casa e nem gastar um puto. E tem todas matérias lá disponível: física, quimica, biologia, matemática. Aquele ator com cara de bobo, que fazia o Castelo Ratim-bum, protagonista dos vídeos, o sujeito não é nada menos que fantástico. Ele fica o tempo todo se perguntando: será isso, será aquilo, o que é uma mitocôndria, o que acontece se eu misturar coca-cola com mentos? É interessante, acho que nunca haviam me ensinado a questionar; e aqueles vídeos, aparentemente bobos, me despertaram uma série desses “questionamentos”. A principio eram mais na linha: “por que diabos eles falam assim, por que me tratam como retardado, será que eu sou tão imbecil?” Mas depois os questionamentos ficam mais elevados: “Quem será que banca essa porcaria, qual tipo de idiota perde tempo assistindo isso, será que eu to aprendendo ou ficando mais burro?”

Estudar no youtube é uma das maravilhas modernas. Você encontra de tudo lá. É só digitar: “sabinada” e eis que um jovem moreno com sotaque baiano te explica tudo, tranquilooo, sem pressa. Imagine se cada professor do Brasil tivesse um canal no youtube? Ia abacar a escola. Todos lá, fornecendo conteúdo de graça, o tempo todo, de suas casas. O problema é que a rede tem muito lixo. Dá um trabalho danado peregrinar nessa internet aloprada. Sim, pois a maioria dos conteúdos são trabalhos de estudantes sem noção do colegial com um péssimo gosto musical. Eles fazem qualquer porcaria no moviemaker, colocam uma trilha sonora e jogam na rede. Já encontrei Canudos ao som de Britney Spears e Descobrimento do Brasil ao som de Leandro e Leonardo. Não estou certo ainda sobre os limites da internet, mas alguém deveria fiscalizar essas coisas.

Mesmo assim, decidi que estava no caminho certo. Livros são objetos do século passado. Estudante hoje em dia aprende é no youtube.

24 – Bagunça

Café. Mais café. A cafeteira não parava de funcionar. Era um tentativa frustrada de dar um tapa nos neurônios, fazer funcionar no tranco. Mas, nada. O pauzinho do word piscava na minha frente. Ensaiava alguma coisa. Escrevia uma frase…“<= Backspace”.

Mais café.

O cachorro me olhava. Às vezes trazia uma bolinha de tênis na boca. Atirava em algum canto e ouvia ele arranhar o piso correndo atrás. Se ao menos o cão pudesse ler alguma coisa, se ao menos pudesse me dar uma opinião, se pudesse conversar. Dizem que cães são ótimos para enfrentar a solidão. Ficava me olhando, mexendo o rabo e apontava a bolinha com o focinho. Pegava do chão. E lá ia ele de novo correr atrás.

Por que eu não conseguia escrever? O que estava acontecendo? Era a bagunça, sim, a bagunça. Eu precisava de bagunça. Aquela casa era organizada demais pra mim. Tentava deixar o lugar com minha cara durante o dia: louça suja, cama desarrumada, roupas espalhadas, mas lá pelas quatro ou cinco da tarde já tinha que começar a arrumar de novo. Não, nunca conheci ninguém tão organizado como meu pai. Ele chegava fazendo uma inspeção, olhava a pia, a sala, o banheiro, qualquer coisa fora do lugar e ele resmungava em algum canto da casa: “mas que bagunça, que bagunça!”, enchia a boca, dando ênfase no gu: BaGUnça. Acho que a palavra que mais ouvi ele dizer na vida foi bagunça. Bagunça, bagunça. Não, nunca conheci ninguém com pavor tão grande de bagunça. A ciência deveria criar uma categoria, tipo bagunçofobia, pra explicar.

O único espaço que tinha para exercer um pouco da arte da desordem era um armário na sala. Não era bem um armário, era mais uma espécie de cômoda, com uma porta, uma prateleira e um lugar pra pendurar cabides. Como não tinha muitas roupas “penduráveis”, jogava tudo na prateleira de baixo. Era um monte aleatório de tecidos. Gostava de mergulhar o braço lá e puxar uma peça de roupa; e era assim que meu dia começava, com uma escolha aleatória do que iria vestir. Achar um par de meias era praticamente uma pesca esportiva.

Nunca dobrei uma camisa, ao menos não nesse estilo tradicional de dobrar. Enrolava de maneira que não ficasse muito esgarçada e jogava lá dentro. Nunca entendi esse negócio sistemático de “dobrar”, com as manguinhas pra dentro, tudo igualzinho, em pilhas. Perda de tempo! Por mais amassada que esteja sua camiseta bastam dez minutos com ela no corpo para ficar mais ou menos assentada.

Meias e cuecas em gavetas distintas, organizadas por tons. Camisetas cuidadosamente dobradas e separadas em pilhas de cores e tipo de tecido; sapatos alinhados no armário em pares, separados em categoria social e esporte. Meu pai tinha também uma sessão só com kits de roupas de ginástica e outra especial para viagens, tudo devidamente dobrado, separado e compartimentado. Tudo no seu devido lugar, quadros bem alinhados, enfeites bem colocados. Aquário limpo, cachorro cheiroso, livros em ordem, pastas, fichários, gavetas temáticas. A moça da limpeza ia duas vezes por semana, mas não tinha muito trabalho. Talvez meu pai seja o maior conservador da lei e da ordem desse planeta. Matava o tempo à noite organizando fichas, pastas, livros, revistas. Gostava também de lavar roupa, pendurar, passar umas camisas. Apreciava cozinhar, mas mais do que isso gostava de lavar a louça depois e colocar tudo no lugar. Lavava, secava e guardava. Graças a Deus ele nunca serviu o exército. Fico imaginando que se tivesse pisado num quartel uma unica vez na vida estaria então vivendo com um desses generais cinco estrelas aposentados. Era como se ele tivesse nascido para isso: para a disciplina. Mas a vida tratou de moldá-lo diferente. Pra começar nasceu no Brasil, viajou, separou, faliu, amou, fugiu, lutou, trabalhou… o destino bagunçou um pouco o general e então ele virou um simpático vendedor, bom de papo, de riso fácil, cuja batalha diária passou a lhe rende mais amigos do que inimigos. Isso, é claro, se não bagunçassem sua casa. “Que baGunça, que bagunça!!”

Mais café. Tinha vontade de fumar um cigarro. Não deveria fumar cigarros. Todo mundo dizia para não fumar. Faz mal, dá câncer, ataque cardíaco, entope as veias, deixa broxa. Só um idiota fumaria cigarros com tanta gente dizendo pra não fazer. Dei um trago, tomei mais um gole de café.

O grande mal desse mundo é a ansiedade.

O cachorro me olhava com a bolinha na boca…

Mais um dia com a página em branco.

23 – Propaganda

A publicidade se apossou de tudo. Vivaldi, por exemplo, morreu sem receber um centavo pelos milhões de sabonetes que sua opera vendeu. Gorbachev derrubou a União Soviética e hoje aparece em anúncio de marca de grife da américa capitalista. John Lenon, morto, faz figuração em propaganda de carro e Cheguevara continua vendendo mais camisetas que a C&A, Riachuelo e todas lojas de departamentos juntas. Isso fora quando não usam Jesus Cristo ou Buda.

Eles compraram o futebol no atacado. Estamparam o rabo do juiz com logotipos e deram um troco pro Ronaldinho levantar o dedinho na hora do gol: “é a número um, brasil-sil-sil”. Eles se apoderaram da espontaneidade dos nossos comportamentos. “Deixe sua energia mudar o mundo”, diz a propaganda de refrigerante. Aí eles colocam um vídeo de um sujeito fazendo um ritmo com a latinha no metrô e todo mundo sendo “contaminado” pela energia. Coisa que até poderia acontecer na vida real, mas essa “energia”, esse momento mágico, essa confluência divina, não passaria de mais um reforço publicitário. Mudar o mundo. Que grande bobagem. A publicidade se apoderou até dos nossos antigos anseios juvenis, aquele ímpeto setentista hippie de “mudar o mundo”. Quem hoje em dia quer mudar o mundo quando uma porcaria de refrigerante diz pra você fazer isso? Eles nos roubaram a espontaneidade e querem nos vender de volta…

Se o pessoal do hip-hop tá reclamando demais, incitando a desordem. Vamos fazer vídeo-clipes milionários, dar carros potentes, mulheres gostosas, cordões de ouro, assim a gente mantem mais gente nessa rodinha de hamster. Tá vendo, se os negões podem, você também pode. É só se dedicar, acreditar, comprar, consumir. E assim a piramide continua e as vendas de uísque importado aumentam.

A nova mania na aurora do fim do mundo é se apoderar dos nossos mais ancestrais medos apocalípticos. Um senhor com cara de sábio anuncia no vídeo: “um dia estranho, o mais estranho dos dias estranhos” e aí ele conta que o sol não apareceu, que todos tiveram que enfrentar o desconhecido e que não foi nada fácil. Enquanto isso, cenas da caminhonete pra cima e pra baixo, trabalhando. No final o narrador diz: “Nova Ford Ranger, pra enfrentar o que você conhece e o que ainda não conhece”.

Outra propaganda mostra um ator de filme de ação dirigindo por ruas vazias. Uma música clássica, uma loira gostosa do lado, bancos de couro, ar-condicionado, tudo funciona maravilhosamente bem até ele parar, abrir a porta e sair do carro. Lá fora é pura bagunça, gente brigando, acidente, sirene, poluição. O valente Jack Bouer então volta rapidamente pro carro, olha pra loira e diz: “It´s fine”. A música volta e o narrador diz: Novo Citroen C4 Pallas, com ele tudo fica diferente…Sim, a publicidade consegue nos vender até mesmo nosso próprio egoísmo.

Durante o curso de árabe achei que pudesse ter um talento especial para línguas. Na verdade não estava fazendo muito progresso, mas é que às vezes sou desse tipinho que se empolga rapidamente e acredita ter talento pra qualquer coisa que se proponha a fazer, já outras vezes me acho o pior dos seres humanos.

Dois meses se passaram e eu já sabia desenhar todo o alfabeto, por outro lado ainda não tinha ideia de como posicionar a língua corretamente e emitir o som do Alif, a primeira letra do alfabeto; e por consequencia todas as demais. Comecei a achar que no fundo tinha um talento especial para desenhar. Desenhar letras árabes. Era isso que eu deveria fazer na vida, virar desenhista de alfabeto árabe.

Olhava para Omaima, a professora, e desenhava no caderno, ilustrando a suavidade do seu sotaque em linhas musicais arábicas. Era tão doce, tão meiga.

Mas então ela passava para o árabe.

– Máçal kheir, arranhava o ouvido de todo mundo com uma fisionomia horrível, como se fosse outra pessoa. Logo depois emendava docemente: “E esta é como diz a Bom dia”.

Conheci um sujeito que usava um pulôver e óclinhos de intelectual. Costumávamos pegar metrô juntos na saída do curso. O sujeito fazia letras na USP e era um desses tipos raros que você encontra por aí; desses que sabem de tudo. Conheci poucos como ele. Era um baú de informação e não fazia questão de guardar nada para si. Me explicou a prosódia russa, a história do latim, as facilidades do grego, a semiótica de Saussure. O problema de pessoas como aquele rapaz é que raramente encontram um bom ouvinte nesse mundo raso. É verdade que qualquer um que não assista novela, Big Brother ou futebol, goza de certa falta de atenção nesses tempos ignóbeis, mas um cara que consegue discorrer da estação Consolação até o Paraíso sobre as origens eslavas do russo, ahh, certamente essa pessoa vive na mais profunda e sombria solidão.

Devo dizer, eu era um bom ouvinte. Ainda sou. Em fato, sempre fui um bom ouvinte. Na verdade tudo o que aprendi na vida foi ouvindo os outros. Não sou do tipo que lê. Até leio um pouco, leio bastante pra média brasileira, mas aprendi muito mais coisa ouvindo dos outros. No bar, no metrô, no ônibus, as pessoas precisam falar, tem necessidade de falar e não custa nada ouvi-las. Já pensei em ser mais seletivo, ouvir só a quem me interessa, ou quem pode me acrescentar algo. Mas a melhor coisa é deixá-las falar. Sim, pois com apenas uma palavra o bom ouvinte, aquele que presta atenção de verdade, pode mudar radicalmente o curso da proza. “E o corinthians hein?”, pronto, e de repente a conversa sai da seara da política para o futebol. Geralmente o falador é um rio que segue implacável, discorrendo, discorrendo, discorrendo. O ouvinte é apenas o catalizador,  que diz pra onde essa água toda vai.

– Você deveria tentar fazer letras, disse o rapaz segundos antes do apito anunciar o fechamento das portas. Era a minha estação, já estava do lado de fora quando ele disse aquilo. Acenei com a mão em despedida. Ele seguiu viagem.

Outra verdade nos faladores é que eles geralmente se identificam nos ouvintes. Eu por exemplo, não tenho qualquer especial interesse por carros ou motores, mas certa vez me pus a ouvir um sujeito apaixonado por veículos. Ao final da conversa ele me tinha como um grande entendedor e uma vez até me ligou pra perguntar algo.

“Você deveria fazer letras”. Fiquei com aquilo na cabeça. De fato eu já havia pensado em tentar uma segunda faculdade. Todo mundo que se formou em jornalismo pensa em fazer uma segunda faculdade. Além do mais, eu estava me dando bem no árabe; já sabia escrever todo o alfabeto.

Fazia tempo que eu já pensava em uma segunda faculdade. E tinha que ser Letras! Já tinha isso em mente desde de quando conheci Aline, aquela gatinha de letras que gostava do meu blog. Aliás, até mesmo antes dela, quando Ritinha Vitae abandonou o curso de jornalismo e a virgindade para se dedicar às letras e a promiscuidade. Aliás, muito antes disso, quando namorei com Manoella, estudante de letras e dona de um bumbum incrível. Sim, todos os caminhos me levavam à Letras. Todo mundo dizia que era o curso mais fácil de passar. É fácil, dizia Aline. É fácil, dizia Ritinha. É fácil, dizia Manolla. É fácil disse o rapaz de pulôver e óclinhos.

E então, naquele momento, eu aposentei de vez a ideia de ser garçom em Dubai e comecei a pensar no vestibular. Poderia retomar a ideia de ser escritor. Sim, seria um escritor com diploma de escritor. Se fosse um fracasso viveria de dar aulas ou de fazer críticas literárias a outros mais bem sucedidos. Além do mais, que diabos! Um sujeito que fala várias línguas e entende de semiótica não precisa se preocupar com mais nada nesse mundo. Dinheiro, mulher, sucesso, era tudo consequencia. Sim, dali em diante estudaria com afinco para a prova de Letras na Universidade de São Paulo. O curso mais fácil de passar!

Caminhos

21 – Rotina

Não parece ter ninguém presente. Os corpos são meros avatares desprovidos de realidade, zanzando com sensações anestesiadas sem saber se o clima está quente ou frio ou se é o ar condicionado do carro (shopping-casa-trabalho) que está desregulado. Vagam anônimos por entre avenidas e ruas da babilônia tentando desesperadamente serem notados. A maior parte da atenção é para sí, em como andam, como vestem, como falam. No mais, são todos sequestradores.

Cada centímetro, cada esquina, cada parede é planejada cuidadosamente para sequestrar um breve segundo dessa falta de atenção. E, devo dizer, eles tentam de tudo. Slogans, logotipo, camisetas, adesivos, banners, telas LCD, bandeiras, bundas, jornais, revistas, etiquetas, preços, números, letras, mamilos, cifras, telefones, www, @s, promouters gostosas, cor, luz, som, ursinho de pelúcia cuidadosamente colocado em frente a vagina em uma foto sensual na revista da banca de jornal. Alguns param, repousam os olhos, vão.

Na rua, buzina e motor. Nas galerias, conversas e ringtones. Tento escapara. Subo pela Padre João Manoel e a Paulista se descortina por entre prédios. Lá está ela, enorme, escura. O sol da manhã tenta achar brecha entre os prédios. Para quem vem de fora parece tudo agitado, mas é um dos momentos mais calmos do dia. Garçons servem tranquilos num café em frente ao metrô, garis conversam mostrando fotos no celular. O dono da banca lê as notícias do dia.

Meio dia, sol a pino, avenida ilustre, grande, iluminada; hora dos imensos cupinzeiros de concreto liberarem trabalhadores famintos que zanzam em busca de comida. O café enche; garçonetes suam entre indas e vindas forçando sorrisos, olham o relógio torcendo pra hora passar. O jornaleiro larga o jornal, os garis desaparecem, a rua é um mar de rostos, todos diferentes, cores, cabelos, roupas. Todo mundo precisa ser diferente, os carros na avenida também; exibem suas marcas, estilos e calotas, parados no tráfego. Todo mundo quer ser diferente mas faz todo dia a mesma coisa.

Todo mundo quer ser livre. Todo mundo quer fazer o que quer. Todo mundo quer ter um cartão de crédito.

A bolha prossegue. Todo dia um pouco diferente. Todo dia um pouco mais. Todo dia um pouco mais rápido. Todo dia um pouco maior. Ploc!

Ela fumava um cigarro e me olhava com olhos fraternais. Fazia isso sempre. Não que fossem verdadeiros ou falsos, sabia fazia o olhar que quisesse. O problema é que sempre contrastavam com o boca. Lábios carnudos, como um filé de picanha cru, com aquele sorriso irônico, pronto para desferir o mais mortal dos comentários. “Eu acho que você escreve mal. Não é que escreve mal, talvez escreva até bem, mas é que você quer ser beat, e você não é beat de verdade. Você não sabe o que é uma vida beat de verdade”.

A noite havia transcorrido bastante após a cerveja com Jaimovsky e Ritinha Vitae. Estava em algum ponto da Rua Augusta, eu, ela, Bea Tnik, e mais um grupinho de amigos que seguia na frente, incluindo ali seu novo namorado, o benê, um sujeito que não conhecia, mas que não ficava muito confortável ao vê-la bêbada se escorando em mim logo atrás. “Ele é ótimo, sabia. Amo ele, de verdade. Sabia que to namorando dois, thi? Ele e mais um carinha da alemanhã que conheci no facebook… Mas não é esses namorinhos virtuais não, ele já veio pra cá, transamos pra caramba, uns 30 dias sem parar. Nossa thi, o alemão mete bem. Na verdade não é bem alemão, é macedônio, chamo ele de lesmão. Ele vai me levar pra lá, pra europa, em julho. Vou morar com ele. E o mais legal é que o benê sabe disso, nosso namoro tem prazo pra terminar.”

Ela estava mais magra. Bem mais magra do que a última vez que nos vimos. Disse estar com anorexia nervosa; o mais novo item na sua coleção de problemas. Mas o sorriso era o mesmo, sempre irônico, emblemático, como se estivesse escondendo um comentário feroz e devastador. Estava com seus cabelos vermelhos de sempre e uma blusa de frio cobrindo a tatuagem gigante da fênix que tem nas costas. “Você tá gordo. Olha sua postura tá horrível. Qué isso meu, que absurdo, você sempre foi um cara preza, agora virou um jeca? Faz uns exercícios thi. Pára de comer”.

Cruzamos a Luis Coelho e baixamos no BH, ela entrou, pegou duas cervejas da geladeira, aproveitou a movimentação e saiu sem pagar. “Sabe, eu te amo thi. Eu casaria com você, você é a melhor pessoa que já conheci na vida. Mas acho que você não me comeria direito. Gosto de homens que me jogam na cama e transam comigo como se eu fosse uma puta, me arregaçam e depois me tratam como uma princesa, sabe esse tipo? Você não tem muito esse perfil. Sim, eu sei que eu não faço seu tipo também, mas eu te amo, de verdade”. Dizia isso baixinho, com voz sedutora, próximo ao meu ouvido. Logo depois, saia dando risada, falando alto, entrando na conversa de outro grupo.

Descemos a Augusta sentido meretrício. Paramos para comprar mais cerveja, fiz um comentário sobre um ex-namorado dela. Ela riu alto e me deu um tapa na cara. “Como você é besta. Seu filho-da-puta”, disse ainda rindo, meio nervosa. A marca ficou no rosto por algum tempo.

“Desculpa thi. Não estou bem, sabe. Tenho problemas. Estão cada vez piores. To sem grana nenhuma, meus remédios são todos caros. Não é loucurinha tipo coisinha pouca, é loucura mesmo, diagnoticada, problema sério, ando tendo direto sindrome do pânico”

O resto da noite ela tentou ser espontânea, mas não conseguiu mais. Aquele tapa incomodou mais a ela do que a mim. “Porra meu, vai ficar aí de cara só porque te dei um tapa? Desculpa thi, não devia ter feito isso. Você tá certo. Faz quanto tempo que a gente não se fala? Tempo pra caralho né? Também, você fica perdido lá longe. Porque nos abandonou? Volta pra cá? Me perdoa”.

Não tinha muito o que perdoar. No fundo entendia Tnik. Talvez eu não soubesse de verdade o que era ter uma vida beat. Ela perdeu o pai na véspera do natal de 1995, quando tinha 15 anos. Foi assassinado na sua frente no interior. Tudo o que veio depois foi consequência daquele dia. Não que isso tenha qualquer coisa a ver com ser ou não ser beatnik, mas ele encontrou nessa literatura uma espécie de remédio pros traumas. Podíamos ler os mesmos livros, mas nunca leríamos da mesma maneira.

O céu já mudava de cor quando nos despedimos no cruzamrnto com a paulista. “Você devia voltar pra São Paulo. Faz falta aqui, sabia?”. Me abraçou, sorriu e virou as costas andando pela cidade com seu cabelo vermelho fogo. Era pura paisagem paulistana.

19 – Patife

Ritinha Vitae cruzou com Jaimovsky na porta do bar. Vi de longe quando se cumprimentaram e ele apontou para a mesa onde eu bebia sozinho. Fazia tempo que não via Vitae. Tinha cortado o cabelo, bem curto. “Eae seu energúmeno, quanto tempo. Me dá um beijo!”. O “energúmeno” não tinha a mesma entonação nem a vivacidade de antes, dava pra ver que ela estava meio pra baixo. Sentou na cadeira do Jamovsky, acendeu um cigarro e bebeu um gole da vodka com raspa de limão: “Hum, você que pediu isso?”.

Ela tinha terminado o namoro. Era um namoro que nunca ia dar certo. Todo mundo tinha avisado, mas ela insistiu. Na verdade acreditou que daria certo mais pelo medo de ficar sozinha do que por lampejos de amor, paixão ou mesmo racionalidade. “Isso não pode, ele terminar comigo. Ele, logo ele, o Patife? Eu é que tinha que terminar!”. Na verdade já tinham terminado algumas outras vezes, sempre por iniciativa dela. Aliás, posso contar nos dedos de uma mão as vezes que vi eles juntos; estavam sempre “terminados”. “Ele não quer voltar, de jeito nenhum. Isso é uma humilhação, levar um fora do Patife! Logo do Patife?”.

Geralmente os dois discutiam, tinham uma briga feia, provavelmente por causa de alguma banda ou escritor, e então terminavam, sempre por iniciativa dela. No fundo o que Vitae gostava era de ver ele rastejar de volta, que nem um cachorrinho, lamber o chão e pedir pelo-amor-de-deus-volta-pra-mim. Mas dessa vez foi diferente. Dava pra ver que ela estava transtornada. Nunca imaginou que ele pudesse terminar de verdade. “Ele disse que tinha cansado das minhas loucuras, e nunca mais me ligou. Ele nunca fez isso. Geralmente no dia seguinte já ligava. E eu tonta, em vez de ficar quieta, fui atrás! Aí que raiva. Agora fui eu quem levou o fora. E agora, o que que eu faço? Fuma um cigarro comigo. Você parou de fumar? Sério? Aquele lugar tá te fazendo mal! É acho que deveria parar de fumar também”, disse jogando o maço na mesa.

Tinha o beiço típico da decepção e ria menos do que o de costume. “Maldito Patife, eu é que tinha que ter terminado com ele, como fui burra de ligar e pedir pra voltar… Como assim não tem diferença? É a mesma diferença entre ser despedido e se demitir, oras. Como vou arrumar outro emprego sendo mandada embora assim?”

Ele chama o garçom, pede uma vodka com gelo e uma raspa de limão. “Lembra desse drink Thiaguinho”- é um dos únicos que tem o costume de me chamar dessa forma. “Vodka, gelo e uma raspa de limão”, levanta o copo e dá um gole. “Cerveja todo dia empapuça”. Estava em sua jaqueta de couro com o maço de L&M no bolso. Jaimovsky e é um escritor sem livros, uma espécie de neo-bit, ou pós-beat, sentado em pleno Charm, na Augusta, segurando um cigarro, com olhar perdido no copo de vodka.

“O que ficam são as pequenas coisas Thiaguinho. Lembro até hoje do jeito que meu pai segurava o cigarro”, e então mostra o cigarro meio inclinado, com a ponta em brasa, deixando correr uma fina linha branca de fumaça. “O jeito que ele bebia o drink dele” e então pegava o copo de vodka com raspa de limão com a mesma calma e tranquilidade, num gesto digno de Hunfrey Bougard no seu momento de maior inspiração.

É início de noite na Augusta. Os bares começam a ferver, primeiro chegam os que trabalham perto e os que ficaram a toa o dia inteiro, como nós. Em volta dezenas de pessoas, fumaça de cigarro, um garçom atarefado, e uma moça sentada sozinha com olhos voltados para o telejornal, atrás da nossa mesa. Viro para trás e vejo uma cena de enchente. Resolvo voltar pra conversa.

“Não sei se você sabe Thiaguinho, ele morreu no ano passado. Essa é uma das coisas que ele deixou, as pequenas coisas. Isso é o importante da vida Thiaguinho, as pequenas coisas. Os budistas falam isso. Já leu o livro dos mortos tibetanos? Não? Nem eu, mas eu tenho ele. Comprei num sebo. Tem que ler Thiaguinho, tem que ler.”

Falando nisso já leu o almoço nú do Burroughs , Porra thiaguinho ainda não? Quanto tempo faz que já te falei pra ler? Tá lendo o que? pergunte ao pó? É, o Fante também é bom, mas lê o almoço nú”

“Essa rua aqui, Thiaguinho, pra mim é o lugar mais impessoal de toda São Paulo, talvez, de todo Brasil. As pessoas não se olham nos olhos, são grupos diferentes, vagando por aí, interessados em seus mundinhos. Eu posso me levantar daqui, ir alí no meio daquele grupo, baixar minhas calças e cagar que eu não vou ser notado por ninguém. Isso não é incrivel?”.

Eu larguei meus contos. Faz tempo que não escrevo mais nada. É foda ganhar a vida hoje em dia. Escrever não tem mais valor. Tava pensando em pagar a mim mesmo pra escrever, mas não tenho um puto. Agora to no twitter. Esse twitter é algo incrível. Eu escrevo às vezes em inglês, o nome dele é bicstopmotion, com o arrobinha na frente. Sabe esses desenhos que você faz no caderno e vai passando? Bic Stop Motion, saca? Quantos seguidores eu tenho? Não sei, não olho meu contador, só vou escrevendo”.

“Já ouviu Egberto Gismonti? Porra Thiaguinho, caralho, você já tem 27 anos mano, que mundo você vive? Você tem que sair lá do mato cara. Você não era o viajante? Você é o viajante pra mim. Você é o viajante assim como eu sou o escritor. Tá no seu sangue. Você tem que ir pra Londres, Nova York, Paris, você tem que ir atrás dela, pegar essa cultura toda que tá por aí”

“Sim, parece legal isso que você falou, natureza, mais tempo livre, oportunidade de trabalho, mas você tem que ir pros grandes centros. Você não tá com uma cara boa. O que tá acontecendo. Mulher né? Só podia ser mulher. Você sempre foi pegador, tá chorando por causa de mulher?”

Mas também não se preocupa muito com isso não, a vida é um cliclo. Às vezes fica lá um período. É isso que você tá fazendo né? É de fato, é a melhor coisa. Mas cara, suga tudo o que você tem que sugar de cultura e experiência e depois vai pra algum canto”.

E então ele se levantou e foi fumar um cigarro.

17 – Vislumbre

São Paulo deve ter sido a capital das charretes de cafeicultores, que andavam com seus chapelões e suas espivetadas esposas brancas vestidas em cascas. Provavelmente já foi uma cidade onde sedutoras mulatas de poucos panos conseguiam atravessar a rua sem pressa. Um lugar onde pandeiros e violas ecoavam nas  recém criadas esquinas da Zona Leste. A cidade devia ter mato, um mato verde, ainda não tingido pelo monóxido dos veículos. Pequenas tribos de índios deviam existir onde hoje brotam bairros da zona Sul. Uma chacará de colonizadores no Anhangabaú, uns carcamanos pobres em casinhas na Mooca, japoneses magros na Liberdade, árabes atarefados no centro. Um ou outro índio sem identidade devia circular livremente pela densa mata atlântica, sem ruas, sem pistas, sem sinais, sem prédios, sem barulho. Tudo germinando junto, calmamente, num caldeirão gigante prestes a entrear em ebulição.

Pensava nisso sentado em um banco na varanda da Casa das Rosas, talvez o último suspiro de poesia arquitetônica do passado. Ao redor, prédios, galerias, avenidas, metrôs. Tudo crescendo rápido, sem tempo para uma olhada, um vislumbre, marchando sobre a história, buscando um futuro sem futuro.

Sou contra geralizações, dizer que tal grupo faz isso, ou tal grupo faz aquilo. Mas um traço que, para mim é característico de um bom paulistano é esse negócio de ser simpaticamente contra tudo. É uma necessidade estranha de tentar agradar reclamando e torcendo o nariz. É como se você só conseguisse ser legal se achasse um defeito no troço. Você consegue ser ainda mais legal se conseguir montar uma tese de sustentação com argumentos semi-científicos e fazer todo mundo concordar que aquilo realmente que está sendo discutido é uma bosta. Não existe nada tão admirável nas cult-nights paulistanas do que o camarada que critica bem. Com minúcias de detalhes e riqueza narrativa, o bom crítico sai do cinema emendando um discurso que humilha o diretor, detona todo trabalho de toda equipe de produção e arranca o couro do roteirista. Depois de tudo isso, vai sorrir e te convidar pra tomar uma cerveja.

Mas ao mesmo tempo, e talvez com a mesma contundência, ele pode falar bem. Claro, contanto que ninguém mais conheça o artista em questão. Tem outra ocasião também. Quando o artista está morto, fato que faz os mais reconhecidos serem, de fato, reconhecidos. Se o artista estiver vivo e presente no local, também não será avacalhado, pelo menos não naquele momento, o trabalho, nesse caso será dos jornais, sites e revistas.

Se reparar, não existem muitos artistas paulistanos, a maioria vem de fora, de outros estados. Talvez pelo fato de ser praticamente impossível desenvolver um talento artistico em meio a tantas críticas. São Paulo não é exatamente o melhor lugar para se gerar talentos, mas com certeza forma ótimos e competentes críticos amadores.

Eu tinha uma grande história. Tinha certeza que tinha uma grande história. De todas as histórias de intercâmbio, a minha era a melhor. Eu sabia disso. Tinha certeza!

Durante o ano que passei na Nova Zelândia, alimentava um blog chamado Caipirinha com Kiwi. Em algum momento da viagem, logo no início, fui tomado por um espírito beat, provavelmente um neozelandês maluco da década de 70 que apesar de escrever alucinadamente morreu anônimo nas montanhas de Bannockburn sem ter a oportunidade de colocar uma palavrinha sequer na web.

Tinha ânsia de escrever. Gastava uma grana em cybers sujos e ficava horas digitando palavras em teclados sem acentos. No início escrevia sobre coisas recentes, algo como uma semana, mas os relatos foram ficando mais esparsos e os problemas só aumentaram. Às vezes faltava até a grana pro cyber, em outras faltava tempo. Mesmo assim tentava escrever cada coisa, sem condensar nada, apenas a experiência, em palavra nua e crua. E o trabalho acumulou. Relatava coisas de um ou dois meses atrás. O último grande perrengue que escrevi foi o da noite de ano novo, quando fui preso por desacato a autoridade, mas, mesmo esse nunca cheguei a publicar. Acabei ficando mais quatro meses no país, escrevia sempre que tinha oportunidade, mas não relatei da vez que fui roubado, nem de quando negaram meu visto, nem dos últimos grandes foras que levei, nem dos problemas em Auckland, nem das colheitas de Wellington, nem da viagem por Rotorua, e nem da tatuagem na perna. Mas mesmo assim eu tinha escrito uns 80% da viagem lá mesmo na Nova Zelândia publicando tudo no blog; quando chegasse em São Paulo só precisava sentar e escrever os outros 30%.

Fiz uma jarra de café, sentei em frente a uma página em branco no computador. Tinha mais de 300 páginas de word escritas guardadas numa pasta. Com personagens, aventuras, histórias, romances, só precisava organizar tudo e escrever o final.

Nos primeiros dias de volta à São Paulo, enquanto minha cabeça ainda processava toda a experiência daquele ano beat, costumava andar pelas ruas tentando resgatar a memória. O livro já estava praticamente pronto. Só faltava os 30%…

Só faltava organizar tudo.

Só faltavam 30%

Mas eles não saiam.

Faltava inspiração. Não conseguia mais escrever. Não conseguia mais me acostumar com São Paulo. Aquele lugar era estranho.

Dava uma volta pela Paulista. Ia da estação Vergeueiro até a consolação a pé. Passava pelo viatuto em cima da 23 de maio e às vezes fumava um cigarro e olhava o congestionamento de carros, tudo parado nos dois sentidos. Tentava recordar as imagens das montanhas, das praias, das florestas.

Fumava outro cigarro no vão do Masp. Usava a mesma jaqueta que passei um ano na Nova Zelândia. Era de couro, gostava dela porque parecia a do Indiana Jones, pelo menos pra mim. Também usava uma camisa xadrez da C&A. Nos dias mais frios sempre saia com as duas. Não as lavava nunca.

Observava o fluxo de turistas, protestos, vendedores de Ocas, bravos poetas independentes, músicos bolivianos, apresentações teatrais, equilibristas e malabaristas. Não existia um guia nem qualquer regularidade de atrações, às vezes, no dia que o dia em que mais prometia, restavam apenas pombos.

Com as mãos na cabeça e a mesma página em branco, percebi que aquilo não ia me levar a lugar nenhum. Uma ansiedade bateu. Aquela sensação de quem já está com vinte e quatro anos e não tem uma vida, sem emprego, vivendo na sala do apartamento do pai. Precisava tomar um rumo. Ninguém ia ler um livro idiota de um babaca que passou um ano se dando mal em outro país. Sem dúvida que eu devia abandonar essa ideia idiota e cair no trabalho de novo. Não dava pra ficar sem trabalhar. Meu pai chegava todo dia em casa cansado segurando sacolinhas plásticas com pães e mais alguma coisa gordurosa. Colocava tudo na mesa,  e dizia: “Vida mansa hein…” Tirei algumas vezes satisfação com ele sobre isso, disse que não era fácil arrumar emprego em jornalismo, que o mercado era cruel, que nosso sindicato não prestava e que ele não deveria tentar me fazer pior do que já estava me sentindo. No fundo fui injusto. Uma das maiores paixões do meu pai foi o trabalho, não tinha direito de tirar o prazer dele contar vantagem disso. Seria como se ele fosse craque no tênis e não pudesse se vangloriar. Como não tinha especial interesse por tênis, nem por trabalho naquele momento, não precisava me preocupar com nada.

Estava na mesma posição, com as mãos na cabeça, e uma página em branco na frente. Um jarra de café do lado, o cachorro fazendo barulho lambendo a genital logo atrás. Nesse momento pipocou o gtalk. Uma amiga mandou uma vaga de trabalho em Diamantino, interior de Mato Grosso. Dizia que era para adicionar o sujeito no MSN e no Orkut. Liguei, mas ele disse que era melhor falar no msn pra eu não gastar com telefone. Cada nova mensagem do MSN do “O Divisor – o melhor jornal do médio-norte de Mato Grosso” era uma catástrofe ortográfica. Era pra ganhar pouco, não era carteira assinada e nem tinha garantia alguma de nada que fosse, nem tampouco qualquer referência de nada em qualquer lugar. Era apenas um jornal do Médio Norte mato-grossense chefiado por um cara que mal sabia escrever português direito e tinha anunciado a vaga na comunidade “Emprego para jornalista”, no orkut . Mandei um currículo. Coloquei uma mochila nas costas, comprei uma passagem e vazei.

Fiquei lá dois meses, mas tinha história pra caramba, dos vereadores de Alto Paraguai, do prefeito de Diamantino, do povo da cidade, aquele interior dava um livro. Depois disso ainda consegui um emprego na televisão da capital, mas era um vaga temporária, só de cinco meses. Mesmo assim vivi muita coisa lá, muita história, muito vídeo. Dava pra escrever um vídeo-livro, coisa que nem existia ainda. Sim, tinha outra grande história! E essa, sim, daria um livro! Tinha certeza que tinha uma grande história! Eu precisava contar essa grande história. Seria um escritor novamente. Assim que vencesse meu contrato na TV eu voltaria para o apartamento do meu pai e escreveria um livro. Já tinha um monte de coisa escrita também, era só chegar em São Paulo, organizar tudo e escrever o final, devia faltar só uns 30%.

Meu contrato na TV venceu, eu voltei para São Paulo. Estava de novo com aquela uma tela em branco na frente, a jarra de café do lado, o cachorro lambendo a genital atrás.

No prédio tinha uma mulher, loira, bonita, meia idade, solteirona, que levava a serio essa coisa de amor incondicional pelos animais. Ela tinha uns três ou quatro cachorros e mais uns gatos. Um deles, o Spike, era um vira-latas, sujo, cheio de feridas e manco. Quando pegava o elevador junto com ela, sempre ouvia a pergunta: “Como vai a Lully?”; geralmente nesse momento lembrava que tinha esquecido de dar comida ou água para o cachorro e respondia “vai bem”, torcendo no meu íntimo pra que o cão lembrasse de procurar água na privada.

Spike ficava me olhando no elevador. Ele não tinha um olho; catarata, acho.

– Ele vai morrer, eu sinto isso, ela dizia fazendo carinho nas orelhas dele. Eu balançava a cabeça em sinal de luto, mas por dentro pensava: “É obvio que esse cão sarnento vai morrer, é só olhar pra ele, não precisa sentir nada”.

Térreo; ela saia arrastando o cachorro em direção ao parque. “Tchau, manda um beijo pra Lully, vamos Spike!”

Sempre achei uma grande abstração essa coisa maluca de animais de estimação. Onde as pessoas estão com a cabeça? Gastar fortunas para “cuidar” de bichinho? A gente não sabe nem cuidar de nós mesmo! Se nunca tivessemos tirados eles do mato eles estariam lá correndo, caçando, vivendo, se divertindo. Agora, na melhor das hipóteses, vivem em cubículos de concreto, comendo todo dia a mesma comida, usando coleiras, sendo entupidos com vermíforos e vacinas. Aí damos uma voltinha com eles no parque, fazemos um carinho e ficamos tão felizes porque nos abanam o rabinho.

Alguns até tentam fazê-los falar! E não duvido que comecem mesmo a falar qualquer dia. Costumava sair com uma garota que deixava o cachorro o dia inteiro vendo TV. Dizia que se desligasse ele ficava irritado. Irritado? Um cachorro viciado em novela? Não vou me admirar se um dia ela chegar em casa e ele estiver cantando o jingle da propaganda de creme dental.

É assim que gostamos da natureza, querendo fazer com que ela seja igual a gente, sempre adaptando conforme a nossas necessidades. Gostamos de árvores no meio de shoppings, de cascatas artificiais em mansões, de cães com gravatinhas, de macacos que tocam gaita. A gente é assim! Perdemos o contato com o natural, nos falta algo, temos carências… mas nada que um shampoo de cupuaçu e um cãozinho alegre não possam resolver.

13 – Dedo duro

Outra coisa que eu não gostava naquele cão era o tanto mimado que ele era. A namorada do meu pai aparecia lá no apartamento de vez em quando. Ela morava em Porto Alegre, mas fazia aparições estratégicas em São Paulo nos feriados e alguns finais de semana. O cachorro enlouquecia quando via a mulher: gemia, rolava no chão, pulava, corria em círculos. Ela fazia o mesmo antes de se levantar e me cumprimentar educadamente.

Mas o pior era quando ia embora. Tinha que conviver então com um cachorro em profunda depressão. Deitava no chão com cara de ressaca, levantava devagar, como se estivesse morrendo e ia mijar na varanda; com passos pesados, como se fosse o mais injustiçado dos animais; depois voltava pra sofrer calado na sua caminha.

Não é fácil conviver com um ser depressivo dentro de casa. Às vezes ia lá dar um chute nele e ver se estava vivo; o bicho só levantava a cabeça, me olhava e deitava de novo com olhar vazio dando um suspiro. Eu tinha vontade de dar cerveja, pinga, maconha, qualquer coisa pra ver se animava aquele animal. Mas se a namorada do meu pai soubesse que tinha dado qualquer coisa era capaz de me processar judicialmente. Além do mais, ela tinha essa mania estranha de colocar o cachorro perto da orelha e dizer: “me conta, diz se estão judiando de você minha linda, conta, conta tudo pra mamãe”. Claro que no fundo era só uma coisa boba, uma brincadeira, mas, mesmo assim, quando olhava pra cara daquele cachorro, tinha certeza que se pudesse falar o filho-da-mãe não hesitaria em discorrer por horas contra minha pessoa e entregar todos os meus podres.

12 – O cão

Outro aspecto da invisibilidade urbana é esse negócio de bichinho de estimação. Tal coisa já virou febre. No prédio que meu pai alugava apartamento, o Le Vilage, com arquitetura feita sob medidas para solteirões, gays e idosos solitários, todos os moradores tinham ou cães, ou gatos, ou os dois. Inclusive a gente, do 71.

Lully, um cão feminino de uma raça alemã de nome esquisito; aquele do comercial da Cofap. Eu poderia até olhar no Google “cachorro Cofap”, mas acho que essa busca não seria justa com a história. Nunca decorei o nome da porra da raça do cachorro, então pra que fingir que eu sei ?

Pior que a raça, só o nome: Lully, com ipissilon. Quem nomeou foi a namorada do meu pai. Confesso que achei meio homossexual: Lully? Sem preconceito, mas qual tipo de sujeito andaria por ai com uma cachorrinha chamada Lully? Eu definitivamente não era o cara que andaria por ai com uma cachorrinha chamada Lully. Mas meu pai adentrava o ramo da chantagem emocional e quando me sentia o pior dos seres humanos por não cuidar direito daquele pobre e indefeso animal, lá ia eu levar o cachorro feliz da vida pra andar no parque da Aclimação. “Ai que gracinha, que raça que é?”, perguntavam as velhas. “Não sei minha senhora, é do meu pai”. O cão lambia todo mundo.

Desprendido de qualquer juizo de valor, meu pai colocava o cachorro sobre sua barriga grande e saia com ele no colo. Ficava bravo quando chamava de cachorro, ou cão. É cachorra, é ela… Ele adorava o cachorro. Tratava como um filho. Uma vez o cão ficou doente e teve que ser hospitalizado às pressas. Dias depois, após cirurgia e recuperação, o cão apareceu em casa lambendo meu pé balançando o rabo com um esparadrapo gigante da barriga. Estranhei essa atitude dele sentir saudade e me lamber; sempre acreditei que nossa antipatia era recíproca. No fundo tomei aquilo como uma provocação direta do animal. Ele só queria mostrar que tinha um plano de saúde melhor do que o meu. Cão dos infernos…

11 – Emos

Existe certa carência existencial no ar. Nas indas e vindas de milhões de cabeças atarefadas, não tem porque saber quem é este sujeito sentado do seu lado no metrô. Não precisa.

Essa é uma das boas explicações pra os exageros estéticos que vemos de vez em quando na rua. Rostos lotados de piercings, tatuagens demais, cabelos mirabolantes e roupas que parecem saídas de um desenho animado japonês, tudo para marcar presença, ser notado. A novidade naquele ano eram os tais emos, uma geração de crianças recém liberadas pelos pais para sair e encher a cara, mas que numa confusão psicológica resolveu consultar o álbum de figurinhas da barbie e o catalogo do sex pistols para saber com que roupa iam sair.

Os bares da Augusta costumavam dar emos; frutas comuns na aurora do fim de mundo. Certa vez, quando andava com uns amigos por lá, vi um deles bater a cabeça numa porta de ferro até sangrar a testa. Depois ele se sentou vestindo sua gravatinha borboleta vermelha e começou a chorar.

Não sei se aquela célebre figura do filme Laranja Mecânica tem alguma coisa a ver com essa modinha toda. No orkut e outras páginas da internet parece que existe uma certa adoração ou admiração pelo sujeito. Eu gostava pra caramba do filme, assisti uma quatro vezes, muito mais pela direção e produção do que por qualquer interesse na estática da violência, ou assexualismo.

Não sei, mas às vezes me parece que a sociedade não deveria ver certas coisas. Aquele filme Tropa de Elite, por exemplo, ninguém entendeu aquela merda. Os policiais sairam como heróis, disparando armas e ouvindo a trilha sonora do filme nas viaturas; os bandidos sairam mortos e o Estado, o verdadeiro vilão, passou desapercebido.

Logo, já faz tempo que o Estado descobriu a melhor forma de sair ileso: a liberdade. Provavelmente (e aposto muitas fichas nisso), foi a CIA que descobriu. Não seria dificil, era só colocar alguns observadores nos seus laboratórios sociais de ditaduras militares na América Latina. “Freedom is good for everyboody, but bether for us”, deve ter dito um Mcnamura qualquer com charuto na boca.

Tava na cara que não ia dar pra ficar censurando o Chico Buarque, logo o Chico Buarque. A mulherada decifrava o que ele falava, queria saber mais, ansiava, desejava. Então era melhor deixar ele falar, acabar com esse negócio de ditadura, o muro lá em Berlim já havia caído, então bora falar meu povo. E todo mundo falou, e todo mundo foi mal interpretado. Até o Chico…

Pelo o que eu via na TV tinha certeza que esse negócio de ser podre de rico deveria ficar fora de moda muito em breve. O dinheiro parece que consome a vida desse pessoal. Gastam com um monte de bobagem, compram carros, casas, ilhas, mulheres, viagra. Na minha opinião, a única coisa que poderia ser bem aproveitada com a extrema riqueza seria o ócio, aquele ócio sem culpa e sem medo. Mas quem preza o ócio hoje em dia? Rico que é rico quer é cair de cabeça na droga do momento, o tal frenesi consumista.

Eu não ficaria chatedo de ser podre de rico. Ficaria o resto da vida à toa, numa casinha perdida lá no Ceará. De manhã tomaria um café com pão, leria o jornal, daria um mergulho no mar. Na volta prepararia o almoço, uma partida de xadrez, chimarrão, um violão e pôr do sol. Um livro do Jorge Amado , banho, alongamento, sexo e cama. Esse deveria ser o dia-a-dia de um podre de rico. No fim de semana uma saidinha, bar, amigos, parentes, vizinhos, festa, churrasco, sempre, é claro, pagando a conta de todo mundo. Mas ao contrário, os caras querem sempre dar um jeito de ganhar mais, indo em reuniões, falando com acionistas, viajando à noite. É então que eles compram Ferraris, ilhas, mansões para “compensar”; mas precisam marcar nas agendas o horário certo para usufruir. Isso quando não são messias delirantes que apregoam a própria importância para o desenvolvimento da humanidade, quando que, na verdade, estão muito mais preocupados em como irão aparecer na foto da Revista Forbes. Aliás, essas listas da mídia são um grande delírio da pós-póstuma-modernidade, muito provavelmente fruto de uma geração de cabeças educadas por fliperamas que piscam, brilham e apitam pro nerd que faz mais pontos.

Certa vez, numa mesa de bar na augusta, uma jornalista formada no Mackenzie e que trabalhava num site de produção cultural, dessas que são amiga de uma amiga de um amigo, disse que era um absurdo esse negócio de que o fato de uns terem mais, significava menos para o resto. Ela era do tipo que acreditava que com trabalho e dedicação todos poderiam ter, sim, uma fração. Ela era rica; usava uns óculos de armação grossas todo preto e já devia ter pra lá dos 25. Provavelmente o que ganhava no tal site de “produção cultural” não pagava as meias. Não fazia muita questão de esconder esse fato tampouco. Até contou que seu pai tinha lhe dado uma grana pra comprar um apartamento, mas, como fez questão de dizer, preferiu guardar e investir em algum “fundo estrangeiro”. “Sabe como é né, nunca se sabe o futuro”, disse antes de ajeitar os óclinhos.

Dizem que para atingir o nirvana a pessoa deve esvaziar a mente e chegar num estágio de libertação. Tentei uma vez fazer isso, mas só uma vez também… minha mente estava cheia demais de planejamentos pra tentar esvaziar assim, de repente. Talvez o plano principal era ir para Dubai. Tinha colocado isso na cabeça, de que iria para os emirados árabes e trabalharia como garçom em um hotel de luxo. Não que fosse entusiasta da idéia de Dubai, no fundo sabia que aquilo era uma grande loucura humana e que em breve desapareceria do mapa tão rápido quanto apareceu. Mas alguma coisa me dizia que eu tinha que estar lá pra ver!

Descobri um curso de árabe na rua Augusta, no Centro de Cultural Árabe Sírio. Era de graça, só pagava a matrícula, que, se não me engano, era uns 100 reais. Meu plano era estudar alguns meses, tentar arrumar um emprego lá nos Emirados e vazar rumo ao camarote de abertura do fim do mundo.

Árabe não é uma língua muito fácil. Ela é toda desenhada, com pontinhos e acentos que se misturam e formam linhas cardíacas impossíveis de decorar. A melodia também não era lá muito agradável; o que tornava o curso um investimento não muito seguro no quesito “cantar mulheres”. Mas mesmo assim eu estava animado, principalmente pela professora, Omaima. Todos os dias ela chegava meio tímida para uma turma de quase 60 alunos e começava a aula com um sotaquinho carregado; aquilo batina no meu ouvido como beijinhos carinhosos. Observava encantado cada gesto da jovem Síria de cabelos negros e olhos redondos e mal prestava atenção naquele bando de desenhos malucos que ela fazia na lousa.

Tinha me apaixonado por ela no momento exato em que a vi. Foi logo no primeiro dia de aula, quando no salão de conferências do Centro Cultural Árabe Sírio, um batalhão de mais de 300 alunos tomou o auditório para aguardar instruções sobre o início das aulas. Pode parece estranha a imagem de uma multidão aguardando o início de um curso de árabe, mas São Paulo é assim, eventos grátis costumam reunir multidões, seja um show no Ibirapuera, seja um curso de árabe na Augusta.

No microfone um sujeito de bigodinho que não falava português discorria sobre as vantagens de se falar árabe. “Arrala larrala Alarra larra, murrala”, arranhava o ouvido da galera. Ele era traduzido por uma senhora de óculos grossos. “Ele disse que o árabe é uma das línguas mais importantes do mundo”. No fim o sujeito terminou com alguma exaltação anti-americana e disse que seriam quatro classes coordenadas por dois professores. Foi aí que entrou um sujeito alto, de terno marrom, bigodinho e óculos redondo, mais parecido com um bibliotecário de Alexandria, que seria professor de uma das turmas.

Omaima, bela, misteriosa, elegante e com um perfume exótico das amêndoas do mediterrâneo entrou em seguida. A simples visão dela já era um intercâmbio cultural. Perdi-me naqueles olhos negros e imaginei cada experiência, cada história, cada sensação. Queria morar com ela o resto da vida à beira do mediterrâneo, em uma casinha de arquitetura Síria, com jardim florido e uma metralhadora para destruir os malditos yankees.

8 – Labuta

Paulistano, paulistano mesmo, daquele que fala “ô loco meu”, ah, esses são poucos. Você encontra alguns espalhados por aí, alguns ricos outros pobres, filhos de Matarazos e da Silvas . Devem ser milhares, talvez até milhões, mas frente ao fluxo migratório de outros lugares, são ínfimos. Minha família é um exemplo. Viemos do Sul, catapultados pelo Sudestian Dream de nos tornarmos exemplos de sucesso para conterrâneos menos corajosos. Minha avó, dona Eva, tinha especial apreço pela aventura do filho: “Mas bá, em São Paulo. Que guri de valor, não é igual esse bosta que tenho aqui em casa”, dizia apontando para o outro filho, meu tio Geraldo.

Não sei ao certo se sou filho do sul ou do sudeste, todo caso entrei de cabeça desde cedo na cultura paulistana: o trabalho! Se estivesse na Bahia teria aprendido algum instrumento de percursão, no Rio Grande provavelmente arriscaria um vaneirão, no Rio saberia pegar onda, mas em São Paulo, ahh, em São Paulo a tradição era a boa e velha labuta.

Meu pai tinha uma empresa de componentes eletrônicos. Eu e meu irmão costumávamos ficar lá ajudando na linha de produção. Separavamos umas pecinhas pequenas, colocava num saquinho e depois escrevia a quantidade numa etiqueta. Não era lá um trabalho muito importante, mas no fim do dia ele me dava um dinheirinho.

Meu pai sempre valorizou o trabalho. Nunca existiu dinheiro fácil com ele, ou você fazia por merecer, ou passava aperto. Não que um garoto de 10 anos com pai e mãe vá passar aperto propriamente dito, mas era sempre um transtorno sair da fatia economicamente ativa da infância e adolescencia, ainda mais em tempos de publicidade tão específica e mordaz.

Alguns anos depois voltei a prestar serviços pro meu pai, dessa vez como office-boy. Percorria as ruas da cidade com uma pastinha de documentos, um walkman e os bolsos cheios de passes de ônibus e metrô. Gastava parte do salário jogando Street Fighter em fliperamas e alugando filmes na locadora.

Quando terminei o segundo grau virei balconista da locadora. Depois de um tempo , no primeiro ano de faculdade, comecei a vender cursos de inglês nas ruas, num trabalho elegantemente chamado de “agente cultural”. A empresa elegantemente se chamada “Travelling Holistic Sistem”, ou “THS”. Vestido elegantemente de calças laranjas e gravata vermelha só vendi dois cursos, um deles pro meu pai, outro pra um amigo que ele indicou. Mesmo assim, elegantemente, os safados não me pagaram, faliram meses depois dando prejuízo pra mim, pro meu pai e pro amigo dele. Semanas depois caí numa empresa de telemarketing.

Muitos gerundios e “por qual motivo senhor” depois fui mandado embora e cai numa agência do Unibanco. Ganhava então um salário excelente, devidamente registrado, usava gravata e terminava a faculdade de jornalismo à noite. Nessa época coloquei na cabeça que iria para o exterior. Juntei uma grana, fui mandado embora, trabalhei mais seis meses como estagiário numa assessoria de imprensa e depois vazei para a Nova Zelândia.

Lá, do outro lado do mundo, fiz exatamente o que aprendi a fazer nesses anos todos: Trabalhei! Durante um ano colhi frutas, servi cafés, arrumei quartos e pintei paredes. Voltei, fui parar em Mato Grosso, trabalhei em um jornal no interior, depois em um site em Cuiabá. Fui mandado embora e estava então novamente em São Paulo, morando num apartamento de solteiro junto com meu pai, dormindo na sala, num sofá-cama.

O que todos esses anos de trabalho me ensinaram? Ora, muita coisa! Posso dizer que hoje sei exatamente o valor do dinheiro. Sim, o dinheiro vale muito, camarada! Vale muito mesmo!

Ele praticamente vale a sua vida…

Não existem muitos pontos de vistas temporais diferentes na cidade de São Paulo. As pessoas passam o dia correndo em direção a metrôs, ônibus, marginais e, imersas em seus afazeres, mal veem a hora passar. Ok, existem inúmeras profissões e rotinas diferentes, mas são poucos com uma visão alternativa de tempo, no geral está todo mundo no mesmo ritmo. O som da cidade é o do trabalho. Acordava todo dia às 10 da manhã, com o canto do tráfego da rua vergueiro; buzinas de percursão e britadeiras de backing vocal; ahh lindas manhãs esfumaçadas da paulicéia. A trilha sonora frenética da locomotiva que não pode parar dava seu show cedo, lá pelas seis da manhã.

A capital paulista não é exatamente a melhor cidade para se tirar um ano sabático. Não só pelo fato de todos estarem a fazer tudo o tempo todo, mas também porque não existirem muitas áreas de respiro. Tinha sonhos delirantes de poder acordar em Ipanema, no Rio de Janeiro, ou quem sabe na Bahia, tomar um banho de mar, sentar na areia, pensar na vida, exatamente como os grandes poetas e escritores fazem. Mas não. Toda manhã levantava com a impressão que o mundo estava a milhão e eu perdia alguma coisa importante. Sempre há algo para ver em São Paulo, sempre há notícia, acontecimento, turbulência.

Para espairecer dava algumas voltas na pequena pista do parque da Aclimação, exatamente como um ramister enjaulado. Comprava o jornal, fazia um café e cozinhava alguma coisa. Lia alguns livros, escrevia algumas coisas, mas a impressão de estar em outro tempo e dimensão, de ser um “vagabundo” não me deixava extrair o melhor do que aquela experiência de ócio poderia me proporcionar.

A impressão que dá é que São Paulo está sempre sendo construída, com canteiros de obras espalhados, lojas que inauguram e fecham na semana seguinte e operários que mal fazem uma pausa para um cigarro. Uma capital em construção! Crescendo, cada vez mais.

Pra onde é que ninguém sabe…