Eu tinha uma grande história. Tinha certeza que tinha uma grande história. De todas as histórias de intercâmbio, a minha era a melhor. Eu sabia disso. Tinha certeza!
Durante o ano que passei na Nova Zelândia, alimentava um blog chamado Caipirinha com Kiwi. Em algum momento da viagem, logo no início, fui tomado por um espírito beat, provavelmente um neozelandês maluco da década de 70 que apesar de escrever alucinadamente morreu anônimo nas montanhas de Bannockburn sem ter a oportunidade de colocar uma palavrinha sequer na web.
Tinha ânsia de escrever. Gastava uma grana em cybers sujos e ficava horas digitando palavras em teclados sem acentos. No início escrevia sobre coisas recentes, algo como uma semana, mas os relatos foram ficando mais esparsos e os problemas só aumentaram. Às vezes faltava até a grana pro cyber, em outras faltava tempo. Mesmo assim tentava escrever cada coisa, sem condensar nada, apenas a experiência, em palavra nua e crua. E o trabalho acumulou. Relatava coisas de um ou dois meses atrás. O último grande perrengue que escrevi foi o da noite de ano novo, quando fui preso por desacato a autoridade, mas, mesmo esse nunca cheguei a publicar. Acabei ficando mais quatro meses no país, escrevia sempre que tinha oportunidade, mas não relatei da vez que fui roubado, nem de quando negaram meu visto, nem dos últimos grandes foras que levei, nem dos problemas em Auckland, nem das colheitas de Wellington, nem da viagem por Rotorua, e nem da tatuagem na perna. Mas mesmo assim eu tinha escrito uns 80% da viagem lá mesmo na Nova Zelândia publicando tudo no blog; quando chegasse em São Paulo só precisava sentar e escrever os outros 30%.
Fiz uma jarra de café, sentei em frente a uma página em branco no computador. Tinha mais de 300 páginas de word escritas guardadas numa pasta. Com personagens, aventuras, histórias, romances, só precisava organizar tudo e escrever o final.
Nos primeiros dias de volta à São Paulo, enquanto minha cabeça ainda processava toda a experiência daquele ano beat, costumava andar pelas ruas tentando resgatar a memória. O livro já estava praticamente pronto. Só faltava os 30%…
Só faltava organizar tudo.
Só faltavam 30%
Mas eles não saiam.
Faltava inspiração. Não conseguia mais escrever. Não conseguia mais me acostumar com São Paulo. Aquele lugar era estranho.
Dava uma volta pela Paulista. Ia da estação Vergeueiro até a consolação a pé. Passava pelo viatuto em cima da 23 de maio e às vezes fumava um cigarro e olhava o congestionamento de carros, tudo parado nos dois sentidos. Tentava recordar as imagens das montanhas, das praias, das florestas.
Fumava outro cigarro no vão do Masp. Usava a mesma jaqueta que passei um ano na Nova Zelândia. Era de couro, gostava dela porque parecia a do Indiana Jones, pelo menos pra mim. Também usava uma camisa xadrez da C&A. Nos dias mais frios sempre saia com as duas. Não as lavava nunca.
Observava o fluxo de turistas, protestos, vendedores de Ocas, bravos poetas independentes, músicos bolivianos, apresentações teatrais, equilibristas e malabaristas. Não existia um guia nem qualquer regularidade de atrações, às vezes, no dia que o dia em que mais prometia, restavam apenas pombos.
Com as mãos na cabeça e a mesma página em branco, percebi que aquilo não ia me levar a lugar nenhum. Uma ansiedade bateu. Aquela sensação de quem já está com vinte e quatro anos e não tem uma vida, sem emprego, vivendo na sala do apartamento do pai. Precisava tomar um rumo. Ninguém ia ler um livro idiota de um babaca que passou um ano se dando mal em outro país. Sem dúvida que eu devia abandonar essa ideia idiota e cair no trabalho de novo. Não dava pra ficar sem trabalhar. Meu pai chegava todo dia em casa cansado segurando sacolinhas plásticas com pães e mais alguma coisa gordurosa. Colocava tudo na mesa, e dizia: “Vida mansa hein…” Tirei algumas vezes satisfação com ele sobre isso, disse que não era fácil arrumar emprego em jornalismo, que o mercado era cruel, que nosso sindicato não prestava e que ele não deveria tentar me fazer pior do que já estava me sentindo. No fundo fui injusto. Uma das maiores paixões do meu pai foi o trabalho, não tinha direito de tirar o prazer dele contar vantagem disso. Seria como se ele fosse craque no tênis e não pudesse se vangloriar. Como não tinha especial interesse por tênis, nem por trabalho naquele momento, não precisava me preocupar com nada.
Estava na mesma posição, com as mãos na cabeça, e uma página em branco na frente. Um jarra de café do lado, o cachorro fazendo barulho lambendo a genital logo atrás. Nesse momento pipocou o gtalk. Uma amiga mandou uma vaga de trabalho em Diamantino, interior de Mato Grosso. Dizia que era para adicionar o sujeito no MSN e no Orkut. Liguei, mas ele disse que era melhor falar no msn pra eu não gastar com telefone. Cada nova mensagem do MSN do “O Divisor – o melhor jornal do médio-norte de Mato Grosso” era uma catástrofe ortográfica. Era pra ganhar pouco, não era carteira assinada e nem tinha garantia alguma de nada que fosse, nem tampouco qualquer referência de nada em qualquer lugar. Era apenas um jornal do Médio Norte mato-grossense chefiado por um cara que mal sabia escrever português direito e tinha anunciado a vaga na comunidade “Emprego para jornalista”, no orkut . Mandei um currículo. Coloquei uma mochila nas costas, comprei uma passagem e vazei.
Fiquei lá dois meses, mas tinha história pra caramba, dos vereadores de Alto Paraguai, do prefeito de Diamantino, do povo da cidade, aquele interior dava um livro. Depois disso ainda consegui um emprego na televisão da capital, mas era um vaga temporária, só de cinco meses. Mesmo assim vivi muita coisa lá, muita história, muito vídeo. Dava pra escrever um vídeo-livro, coisa que nem existia ainda. Sim, tinha outra grande história! E essa, sim, daria um livro! Tinha certeza que tinha uma grande história! Eu precisava contar essa grande história. Seria um escritor novamente. Assim que vencesse meu contrato na TV eu voltaria para o apartamento do meu pai e escreveria um livro. Já tinha um monte de coisa escrita também, era só chegar em São Paulo, organizar tudo e escrever o final, devia faltar só uns 30%.
Meu contrato na TV venceu, eu voltei para São Paulo. Estava de novo com aquela uma tela em branco na frente, a jarra de café do lado, o cachorro lambendo a genital atrás.
Pô, Thiagão! Texto muito bacana, meu velho! Realmente me deu prazer em ler, não que isso faça alguma diferença pra sua carreira…kkkk…abração brother!
Pra falar a verdade, minha vida só se tornou interessante quando saí de São Paulo…
Sensacional. “Como não tinha especial interesse por tênis, nem por trabalho naquele momento…”. Vejam só. Veio a Mato Grosso trabalhar ou aprender tênis no Círculo Militar? hehe. E esses 30% saem ou não?