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Archive for 19 de maio de 2010

Ela fumava um cigarro e me olhava com olhos fraternais. Fazia isso sempre. Não que fossem verdadeiros ou falsos, sabia fazia o olhar que quisesse. O problema é que sempre contrastavam com o boca. Lábios carnudos, como um filé de picanha cru, com aquele sorriso irônico, pronto para desferir o mais mortal dos comentários. “Eu acho que você escreve mal. Não é que escreve mal, talvez escreva até bem, mas é que você quer ser beat, e você não é beat de verdade. Você não sabe o que é uma vida beat de verdade”.

A noite havia transcorrido bastante após a cerveja com Jaimovsky e Ritinha Vitae. Estava em algum ponto da Rua Augusta, eu, ela, Bea Tnik, e mais um grupinho de amigos que seguia na frente, incluindo ali seu novo namorado, o benê, um sujeito que não conhecia, mas que não ficava muito confortável ao vê-la bêbada se escorando em mim logo atrás. “Ele é ótimo, sabia. Amo ele, de verdade. Sabia que to namorando dois, thi? Ele e mais um carinha da alemanhã que conheci no facebook… Mas não é esses namorinhos virtuais não, ele já veio pra cá, transamos pra caramba, uns 30 dias sem parar. Nossa thi, o alemão mete bem. Na verdade não é bem alemão, é macedônio, chamo ele de lesmão. Ele vai me levar pra lá, pra europa, em julho. Vou morar com ele. E o mais legal é que o benê sabe disso, nosso namoro tem prazo pra terminar.”

Ela estava mais magra. Bem mais magra do que a última vez que nos vimos. Disse estar com anorexia nervosa; o mais novo item na sua coleção de problemas. Mas o sorriso era o mesmo, sempre irônico, emblemático, como se estivesse escondendo um comentário feroz e devastador. Estava com seus cabelos vermelhos de sempre e uma blusa de frio cobrindo a tatuagem gigante da fênix que tem nas costas. “Você tá gordo. Olha sua postura tá horrível. Qué isso meu, que absurdo, você sempre foi um cara preza, agora virou um jeca? Faz uns exercícios thi. Pára de comer”.

Cruzamos a Luis Coelho e baixamos no BH, ela entrou, pegou duas cervejas da geladeira, aproveitou a movimentação e saiu sem pagar. “Sabe, eu te amo thi. Eu casaria com você, você é a melhor pessoa que já conheci na vida. Mas acho que você não me comeria direito. Gosto de homens que me jogam na cama e transam comigo como se eu fosse uma puta, me arregaçam e depois me tratam como uma princesa, sabe esse tipo? Você não tem muito esse perfil. Sim, eu sei que eu não faço seu tipo também, mas eu te amo, de verdade”. Dizia isso baixinho, com voz sedutora, próximo ao meu ouvido. Logo depois, saia dando risada, falando alto, entrando na conversa de outro grupo.

Descemos a Augusta sentido meretrício. Paramos para comprar mais cerveja, fiz um comentário sobre um ex-namorado dela. Ela riu alto e me deu um tapa na cara. “Como você é besta. Seu filho-da-puta”, disse ainda rindo, meio nervosa. A marca ficou no rosto por algum tempo.

“Desculpa thi. Não estou bem, sabe. Tenho problemas. Estão cada vez piores. To sem grana nenhuma, meus remédios são todos caros. Não é loucurinha tipo coisinha pouca, é loucura mesmo, diagnoticada, problema sério, ando tendo direto sindrome do pânico”

O resto da noite ela tentou ser espontânea, mas não conseguiu mais. Aquele tapa incomodou mais a ela do que a mim. “Porra meu, vai ficar aí de cara só porque te dei um tapa? Desculpa thi, não devia ter feito isso. Você tá certo. Faz quanto tempo que a gente não se fala? Tempo pra caralho né? Também, você fica perdido lá longe. Porque nos abandonou? Volta pra cá? Me perdoa”.

Não tinha muito o que perdoar. No fundo entendia Tnik. Talvez eu não soubesse de verdade o que era ter uma vida beat. Ela perdeu o pai na véspera do natal de 1995, quando tinha 15 anos. Foi assassinado na sua frente no interior. Tudo o que veio depois foi consequência daquele dia. Não que isso tenha qualquer coisa a ver com ser ou não ser beatnik, mas ele encontrou nessa literatura uma espécie de remédio pros traumas. Podíamos ler os mesmos livros, mas nunca leríamos da mesma maneira.

O céu já mudava de cor quando nos despedimos no cruzamrnto com a paulista. “Você devia voltar pra São Paulo. Faz falta aqui, sabia?”. Me abraçou, sorriu e virou as costas andando pela cidade com seu cabelo vermelho fogo. Era pura paisagem paulistana.

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