Quando morei em Cuiabá um amigo me convidou para jantar em sua casa junto com sua família. Ele era jornalista como eu, seu pai, um ex-sargento do exército aposentado. Seria um desses encontros surreais e improváveis caso voltássemos 30 anos no tempo; um sargento em plena época da ditadura recebendo um colega jornalista de seu filho também jornalista. No entanto ele nos recebeu bem. Conversamos um bocado, bebemos cerveja e ele contou algumas das operações de seu batalhão: “Antigamente tivemos que desmatar uma área enorme ao norte do Estado. Aquilo ali seria usado para construir cidades e dar terras ao povo do Sul; eles tinham recebido da justiça esse direito após suas fazendas invadirem terras indígenas e serem desapropriados pelo governo”. O mais incrível no seu relato foram os detalhes da operação: “Tínhamos tratores enormes, eles varriam toda floresta e abriam clareiras gigantes na mata. Éramos uma centena de homens, não havia cidades próximas, o calor era infernal, o trabalho pesado. Mas acho que o pior de tudo eram os mosquitos. Os malditos mosquitos. Naquela época a Febre Amarela e a Malária eram um problema. Todos os homens pegaram, todos sem exceção. Diariamente assistíamos centenas deles serem arrastados. Era cena de guerra, coisa de filme mesmo. Nunca vou esquecer um grande amigo que morreu, ele sentia frio, pedia pra cobri-lo, nunca tinha visto isso, um homem suar num calor de 40 graus na mata e pedir pra cobri-lo porque sentia frio. Ele me olhava com os olhos amarelos, cara abatida, pele pálida. Eu fui o único que não pegou a maldita doença. Os médicos disseram que eu tinha uma característica rara no organismo. Mas só de ver todo meu batalhão quase inteiro morrer por causa de um mosquitinho, descobri o sentido da palavra: medo.”
Algum tempo depois, de volta a São Paulo, passo em frente ao Instituto Pasteur na Avenida Paulista. Uma fila enorme de pessoas espera para tomar a vacina contra a Febre Amarela. Alguns estão assustados: já morreram cinco pessoas, dizem que é uma epidemia, dizem que é bom se vacinar, vou tomar logo duas, aliás, três, melhor prevenir do que remediar, além do mais, a vacina é de graça mesmo.
De longe fico olhando aquele monte de gente perdendo horas naquela fila ridícula. Penso naquele sargento, pai do meu amigo. Penso em como ele e seu batalhão enfrentavam a mata no Norte de Mato Grosso em uma época sem imprensa, sem liberdade, sem transparência. Hoje, mais de 30 anos depois, o alarde da nossa mídia se materializa ali, em uma fila gigante no coração financeiro de uma megalópole como São Paulo. Um lugar onde certamente o mosquito morreria de enfisema pulmonar antes de conseguir atravessar a marginal Pinheiros. O que eles estão pensando? Será que isso tudo é… medo?
A Febre Amarela é um antibiótico da natureza muito fraco pro tipo de Câncer que a gente é.